sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Mae(terna)

 Eu que sempre fui desencontrada em muito do que me d(escrevo)... Encontrei uma parte minha que me compõe há muito tempo... 

Uma parte capaz de sentir uma dor espraiada no coletivo... Capaz de fazer do sofrimento no outro um sentido... 

A minha face inesperada, que me aconteceu de fato sem planejamento e sem grande cerimônia...

 Minha identidade ma(e)terna... Um lugar que me ocupa grande parte do dia com responsabilidade, conflitos, dilemas e também desgasta muito das minhas esperanças...

Um espaço que me delimita tem mais de 30 anos, com apenas 1,50 metros e cabelos escuros... ela faz parte do que me tornou criança, filha, irmã, amiga, namorada, pedagoga, esposa, psicóloga... E me sustenta mulher, mãe, menina, separada, moleca... Em busca de me constituir psicanalista.

Virei mãe antes de ser mulher... Nada na lógica da biologia tracejava a fartura - escutar o deslimite que a semântica expressa no popular e permite enredar -, e também a faltura - de faltar altura e altar pra encejar o deslimite da cultura e a potência guardada nas frestas femininas.

Fiquei menina depois de mulher, um vir-a-ser moleca, que me aconteceu no cotidiano tão sem programação, em uma rotina enorme, exaustiva, dolorosa, no entanto capaz de forjar uma abertura que eu desconhecia no meio das minhas entranhas...

Aprendi a entoar risadas e cantigas em madrugadas de choro, de pesadelos, poucas horas de sono e muito temor de perder o presente, já que não ansiava mais pelo futuro.

Entornei dias e dias de cansaço em poucas expectativas, mas uma lista sem fim de atividades cumpridas...

As noites já não servem apenas para sonhar, ou rezar, surgem em meio aos afazeres com o escurecer que entra pelas janelas na casa e traz objetivos e com ela estudo, escuto, brinco, vivo até o primeiro bocejo, que geralmente já me arrebata cansada, para o mundo do passado, onde figuras eternas me consolam as dores efêmeras da vida.

 Exatamente porque os fatos são pueris e as pessoas imortais, é que fechar os olhos, partir, deixar saudade constitui a verdadeira lógica subjetiva. Três palavras, incompatíveis, explicando como os afetos atravessam madrugada a dentro...

É do reino dos sonhos a minha parcela mãe mais cara, a avó materna que passou pouco tempo na minha trajetória, era o xodó da família, tinha por dengo o meu pai, e que plantou em sua neta mais apegada enorme inspiração...

Talvez por isso, e por toda jornada que cada mãe sustenta diariamente, a noite é parcela encantada do dia e mesmo assim não é mais o futuro o horizonte que me guia.

Descobri e me mostrei para mim, mãe, quando passei a sentir cada dia integralmente, independente das horas, da rotina, das obrigações... Sentir o presente foi um bocado difícil... Perdi o alento juvenil de vislumbrar um porvir... 

Desejo em devir, vivo um sentir e adormeço moleca rindo do que pude resolver até ali para que minha cama, meu quarto, minha casa fossem um destino/abrigo/acalanto depois de anos planejando partir...

Ao encarar uma trágica partida, hoje senti essa dor que só encontrei depois de reconhecer minha identidade materna: dor de perder o presente... Esse espaço no tempo, que é o próprio tempo e ninguém percebe até perder um colo amado... Esse tempo que não é passageiro, já que é a própria passagem das horas, e que a memória tenta guardar como passado, mas é a própria história que recusa a ausência/tortura de não mais poder ter aquela pessoa. 

E eu que afirmei a imortalidade, preciso ratificar que a saudade é o reino das criaturas eternas... Que abriga os personagens das histórias, das cantigas, das canções, das fantasias... 

É tudo um tempo vívido apesar da morte. E diante desse destino, a maternidade recusa o futuro... 

Sentir a transitoriedade em 9 meses gestar um ser vivo, é uma experiência implacável... Desvelou o feminino que eu não via, por descuido e negligência. Fragilizou meus apoios externos e internos... 

E foi na infância que encontrei refujo, para lembrar como caminhei até essa chegada... O que pretendo tocar com meus pés, minhas mãos e minha delicada existência, para não perder o sabor inevitável que só o agora pode dar... 

Hoje senti meu medo de perder minha identidade de mãe, que em mim só meu filho pode legitimar... Senti a mulher que estou construindo doer de saudade do colo que abrigava um bebê, que hoje dorme sem precisar mamar, mesmo antes que eu tente lhe ensinar minhas músicas preferidas e meu estilo musical, sem critério mas puramente afetivo...

Ainda hoje choro a perda de Mar-ilha, única em sua trajetória, vasta no alcance de sua poesia... Uma mulher que canta suas tristezas e vitórias, enquanto conta afetos, embala a todos e alcança as estrelas.

"Você deixou saudade aqui dentro de casa", a mãe sabe o amplo significado que tem "dentro" de uma "casa", bem como a mulher sabe a direção que a "saudade" aponta... E não é sobre o que sobrou e pode alimentar a memória, mas sobre o que restou da passagem de uma vida inteira.

H. C. Q. F 6 de Nov de 2021

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