sábado, 23 de março de 2024

Autoenganos

Ele disse incrédulo:

 - achou que podia dar certo? Achou mesmo?

Eu respondi (sem querer):

- achei... Eu sempre acho... que encontrei o amor (e segurei o restante das palavras dentro da boca) ...

- não tinha paz. Lembra, excesso? (Em tom irritado).

- sim... Agora eu lembro de tudo. Espero que isso passe.

- esquece! Por favor!

- vai acontecer... Sempre acontece (rebaixando o tom da voz ainda mais).

- então? Por que tá se fazendo de vítima?

- porque não é o que eu queria.

- o que?

- esquecer... Ser esquecida...

- nem você, nem eu... Entenda! Só aconteceu.

- eu fico me perguntando: quando?

- quando, o que? 

- em qual momento tinha acabado e eu tava lá sozinha.

- todo tempo. Lembra?

- sim, você nunca tava lá.

- não, e eu não menti sobre isso.

- mas fingiu... Muito mal... Mas eu acreditei, porque não queria acreditar em mim, só em você.

- acreditar em mim? Quando? Eu disse várias vezes "eu te amo" e você nunca me ouviu.

- você disse: eu te amo, sua doida; eu te amo, porra; eu te amo, só que rindo (pensei, lembrando da cena, tudo estava diferente, foi um adeus e eu nem percebi).

- tá, já entendi que não foi do jeito que você queria, mas foi...

- esse último, inclusive, foi outro dia...

- outro dia não... Isso já tem bem uns três meses ( e riu).

- tem, exatamente, três semanas. E você disse que eu não te ouvi (percebi que ele nunca me viu, devia ter sido cada noite uma fantasia diferente, porque é isso que eu sinto agora).

- tá bom, então, você quer me culpar pelo que aconteceu, é isso? Pode me culpar, fique à vontade, mas saiba que acabou. Encontrei a luz que ilumina a minha escuridão e me deixa bem.

- não duvido que te deixe bem, mesmo. E que eu não fui capaz de te iluminar... Eu não queria isso. Eu sempre achei que amor fosse sobre ver a nudez da alma do outro. Mas não dá pra ver no escuro né?

- não faz assim... Não faz isso comigo. Eu preciso de paz, você sabe disso. Os últimos acontecimentos foram...

- por que né? Maldita saudade que me fez te mandar email de parabéns na madrugada. São coisas minhas sobre ser presente... Eu tava errada.

- não, ninguém tá errado. Só não era pra ser.

- sim, não era pra ser eu. Dizem que uma lenda japonesa sobre o amor de verdade conta que quando a gente ama alguém...

- para com isso... Você não precisa fazer isso.

- preciso sim. A humilhação é o limite da dignidade do perdedor. Aprendi com Heitor de Tróia, o pai dele correu o maior perigo para colocar duas moedas nos olhos do filho para ele entrar no rio do esquecimento e ser lembrado como príncipe que foi. Eu hoje sou a moeda que o pai deitou sobre os olhos do guerreiro que sozinho enfrentou o homem mais temido da Grécia, pela honra da sua família.

- ah, por favor... O filme não é o mito...

- eu não sou um personagem da mitologia... Eu sou o pedaço de metal forjado e frio: eu virei lembrança para alguém e daqui a pouco talvez nem isso.

- para com isso... A gente ainda pode se ver... Ela não é ciumenta. Mas com ela quero ser diferente.

- ... (Enterrei boa parte do rosto e dá tristeza dentro do peito).

- o que foi?

- foi assim como um resto de sol no mar...

- adeus, fica bem, vou te guardar...

- em cofre não se guarda coisa alguma, em cofre...

- ah, por favor... Essa poesia decadente pra cima de mim agora? Isso já passou.

- eu sou ninguém e você quem é? A palavra começa a viver naquele instante em que é dita.

- não é assim a tradução direta.

- as melhores traduções do alemão e do inglês, não foram capazes de me explicar o mistério mais angustiante que existe.

- o amor? (Torcendo a boca)

- não ser correspondido mesmo se entregando, perdidamente...

- nisso a gente concorda, lembra? Você estava perdida, confusa... E eu tentei te trazer pra perto, para um lado mais tranquilo, o sol da manhã, lembra?

- lembro: a tranquilidade do amanhecer, que embalam o mar e a lua em plena harmonia. E se sabe que é a pessoa certa...

- nossa, para com isso. Deixa passar! Você sabe muito bem que precisa elaborar isso... Acabou, aceita!

- ... (Empurrei ainda mais pro fundo o que senti e apertei os olhos, como se sem ver, não tivesse acontecido, como foi sempre).

- tchau, agora eu tenho que ir. Espero que você fique bem e que se cuide (apressado em se afastar). Cuidado...

- com o sorriso meigo da bonequinha de lixo.

- tá bom, já não aguento mais essa conversa. Não vai dar em nada (e virou as costas).

E desapareceu a fumaça que embriagou meus sentidos. E eu vi a cena de Audrey Hepburn chorando na chuva abraçada a seu gato. Ela acabara de escutar que precisava ser menos ela e mais alguém que ela deixou para trás.

O amor é um Deus que tem seus preferidos, eu perdi sua confiança, mas não deixei de acreditar nele.

Hcqf 25 de março de 2024

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