terça-feira, 19 de julho de 2022

Tornar-se horizonte

Antes, advérbio de tempo, também pode indicar um lugar, onde mesmo sem estar, havia existência.

Parece óbvio uma pré-existência, embora a rotina encubra que tudo teve infância, inclusive o nome das coisas.


Estorninhos, por exemplo, são uma espécie de aves invasoras que chegam em bando. Assustam no campo, pois se alimentam da plantação e adiantam, atrasam ou interrompem o resultado do cultivo. 

Uma revoada que justifica a presença assombrada do espantalho, isto é, uma personagem criada com o intento de assustar grupos de pássaros que se alimentariam do que custou alguns meses de suor e trabalho para só depois virar colheita.


No entanto, quem estava no pedaço de terra que virou fazenda? O que havia quando o chão foi descampado e a casa, só então construída, passou a abrigar uma família e suas necessidades?

Natureza, outra palavra criada para designar o que existiu no passado. Um tempo inabitado de uma história, antes de ser ocupada por pessoas, seus costumes e as determinações criadas para chamar de vida, um trecho da existência.


Manoel* diz que para saber o tamanho das coisas é preciso ter intimidade com elas. E que só se cria essa tamanha proximidade - com sentimentos, pessoas e coisas - depois de achar o antes que elas foram. 

Um tornar-se achadouros de infâncias, cuja direção parece estar sempre para trás, embora na práxis revele um algo a mais que o sentido. Ao invés do aquém, um além de tudo, onde as próprias palavras precisaram invadir, para existirem os habitantes do mundo.


Esse ex-sistir inútil muito interessa aos poetas e aos psicanalistas. Estes últimos, aqueles sujeitos diante dos quais falar em vão é desvelamento. E paradoxalmente é o sopro de vento que pulsiona os navegantes no (a)mar.

Conta a psicanalista Colette Soler** que existe um cemitério de palavras mortas, com personagens fantasmas na Gênesis de cada sujeito: capítulo em que cada um fantasia uma união, para deixar de ser uno.

Na real-idade, antes de tudo inventamos a busca e só depois a fulga. Isto é, mais do que um voltar, um re-voltar-se para as repetições que nos cativaram. Tempœspaço de retorno, para vasculhando-se internamente alcançar, talvez, seu desej(a)r.

E quem assim caminha não deseja encontrar apenas o passado. Perante o desejo é pra diante que se ad-mira. Um destino de tornar-se horizonte e a-mante.

Hellen C. Q. De Freitas, 19 de julho de 2022.


Livros:

*BARROS, Manoel de. Concerto a céu aberto para solos de ave. In: Antologia. Rio de Janeiro: Objetiva. 2015.


**SOLER, C. Alíngua traumática. IN: Ics reinventado. Cia de Freud, 2012.

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