sábado, 18 de dezembro de 2021

Roe-dor

Diz Clarice, para exemplificar um amor, que a condição para ser mãe seria pegar um rato com as próprias mãos e não morrer da sua pior morte.
Trecho que convence pelas sensações de ojeriza, brutalidade, arrepio e realismo incultidas no famoso "Perdoando Deus".
Texto que me ultrapassa, porque perfura a minha história e se mistura com o significado de rato em mim.
Morri uma das minhas mortes ao desejar a invisibilidade que identifico na vida desse roe-dor: quis desaparecer com os momentos que me feriram, mas na travessia aprendi a amar aspectos desse estilo.
Entrar e sair com a habilidade de não ser notado; carregar sua dura, suja e pequenina sobrevivência com cuidado; competência para andar, correr, rastejar,  escalar e nadar; 
Rate-ar foi o que aprendi quando precisei amar. Por isso, o pedaço de vida descrita por Lispector me re-batiza, como o célebre desejo confessado pelo mártir Montéquio.
Hell-e(m) vida foi depois de subsumir com minhas feridas, para tatuá-las na alma, onde nem todos podem espreitá-las, visuslizá-las ou tocá-las. São minhas ratazanas preferidas e é preciso saber ver, tocar e cuidar de rastros para enxergá-las.
Essa miudesa de ser rato, é um jeito irônico de questionar o heroísmo do amor idealizado.
Se a conquista amorosa tiver efeito épico, nada mais constrangedor que celebrar esse feito.
Caso seja uma tragédia enfrentar o amor, cada rito para vencer seus desígnios, serão fonte de cura.
Então, celebrar como um leão - que é  servido e alimentado pela robustez de sua natureza - não constituí a solenidade de amar. 
O banquete posto estará pela luta diária de reconhecer a pequenez dos amantes e avidez de amar.
E aos poucos o amor cor-roe os destinos e resta pouco do que era tido como certo. E a vida se torna o inesperado que viemos experimentar, por sorte ou azar.
Hcqf, 18 de dezembro de 2021


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