Ele disse incrédulo:
- achou que podia dar certo? Achou mesmo?
Eu respondi (sem querer):
- achei... Eu sempre acho... que encontrei o amor (e segurei o restante das palavras dentro da boca) ...
- não tinha paz. Lembra, excesso? (Em tom irritado).
- sim... Agora eu lembro de tudo. Espero que isso passe.
- esquece! Por favor!
- vai acontecer... Sempre acontece (rebaixando o tom da voz ainda mais).
- então? Por que tá se fazendo de vítima?
- porque não é o que eu queria.
- o que?
- esquecer... Ser esquecida...
- nem você, nem eu... Entenda! Só aconteceu.
- eu fico me perguntando: quando?
- quando, o que?
- em qual momento tinha acabado e eu tava lá sozinha.
- todo tempo. Lembra?
- sim, você nunca tava lá.
- não, e eu não menti sobre isso.
- mas fingiu... Muito mal... Mas eu acreditei, porque não queria acreditar em mim, só em você.
- acreditar em mim? Quando? Eu disse várias vezes "eu te amo" e você nunca me ouviu.
- você disse: eu te amo, sua doida; eu te amo, porra; eu te amo, só que rindo (pensei, lembrando da cena, tudo estava diferente, foi um adeus e eu nem percebi).
- tá, já entendi que não foi do jeito que você queria, mas foi...
- esse último, inclusive, foi outro dia...
- outro dia não... Isso já tem bem uns três meses ( e riu).
- tem, exatamente, três semanas. E você disse que eu não te ouvi (percebi que ele nunca me viu, devia ter sido cada noite uma fantasia diferente, porque é isso que eu sinto agora).
- tá bom, então, você quer me culpar pelo que aconteceu, é isso? Pode me culpar, fique à vontade, mas saiba que acabou. Encontrei a luz que ilumina a minha escuridão e me deixa bem.
- não duvido que te deixe bem, mesmo. E que eu não fui capaz de te iluminar... Eu não queria isso. Eu sempre achei que amor fosse sobre ver a nudez da alma do outro. Mas não dá pra ver no escuro né?
- não faz assim... Não faz isso comigo. Eu preciso de paz, você sabe disso. Os últimos acontecimentos foram...
- por que né? Maldita saudade que me fez te mandar email de parabéns na madrugada. São coisas minhas sobre ser presente... Eu tava errada.
- não, ninguém tá errado. Só não era pra ser.
- sim, não era pra ser eu. Dizem que uma lenda japonesa sobre o amor de verdade conta que quando a gente ama alguém...
- para com isso... Você não precisa fazer isso.
- preciso sim. A humilhação é o limite da dignidade do perdedor. Aprendi com Heitor de Tróia, o pai dele correu o maior perigo para colocar duas moedas nos olhos do filho para ele entrar no rio do esquecimento e ser lembrado como príncipe que foi. Eu hoje sou a moeda que o pai deitou sobre os olhos do guerreiro que sozinho enfrentou o homem mais temido da Grécia, pela honra da sua família.
- ah, por favor... O filme não é o mito...
- eu não sou um personagem da mitologia... Eu sou o pedaço de metal forjado e frio: eu virei lembrança para alguém e daqui a pouco talvez nem isso.
- para com isso... A gente ainda pode se ver... Ela não é ciumenta. Mas com ela quero ser diferente.
- ... (Enterrei boa parte do rosto e dá tristeza dentro do peito).
- o que foi?
- foi assim como um resto de sol no mar...
- adeus, fica bem, vou te guardar...
- em cofre não se guarda coisa alguma, em cofre...
- ah, por favor... Essa poesia decadente pra cima de mim agora? Isso já passou.
- eu sou ninguém e você quem é? A palavra começa a viver naquele instante em que é dita.
- não é assim a tradução direta.
- as melhores traduções do alemão e do inglês, não foram capazes de me explicar o mistério mais angustiante que existe.
- o amor? (Torcendo a boca)
- não ser correspondido mesmo se entregando, perdidamente...
- nisso a gente concorda, lembra? Você estava perdida, confusa... E eu tentei te trazer pra perto, para um lado mais tranquilo, o sol da manhã, lembra?
- lembro: a tranquilidade do amanhecer, que embalam o mar e a lua em plena harmonia. E se sabe que é a pessoa certa...
- nossa, para com isso. Deixa passar! Você sabe muito bem que precisa elaborar isso... Acabou, aceita!
- ... (Empurrei ainda mais pro fundo o que senti e apertei os olhos, como se sem ver, não tivesse acontecido, como foi sempre).
- tchau, agora eu tenho que ir. Espero que você fique bem e que se cuide (apressado em se afastar). Cuidado...
- com o sorriso meigo da bonequinha de lixo.
- tá bom, já não aguento mais essa conversa. Não vai dar em nada (e virou as costas).
E desapareceu a fumaça que embriagou meus sentidos. E eu vi a cena de Audrey Hepburn chorando na chuva abraçada a seu gato. Ela acabara de escutar que precisava ser menos ela e mais alguém que ela deixou para trás.
O amor é um Deus que tem seus preferidos, eu perdi sua confiança, mas não deixei de acreditar nele.
Hcqf 25 de março de 2024