Diz, Rubem Alves, em um livro que preciso adquirir, chamado "Variações do prazer":
"Lembro-me do mestre Barthes, a quem amo sem ter conhecido, que compreendia que tudo começa nesta relação amorosa, ligeiramente erótica, entre mestre e aprendiz, e que só aí que se pode saborear, como numa refeição eucarística, os pratos que o mestre preparou com a sua própria carne."
O título e a citação indicam um possível norte para uma análise psicanalítica... Mas gostaria de aproveitar a "poética" deste autor para usar de uma licença analítica...
Sabor, prazer, amor, saber e erotismo. Uma semântica intensa e sinestésica...
Co-zinhar pode ser solitário no preparo, narcísico no significado, mas é conjugal no processo...
Tem alguma coisa de sedutor que só pode ser em par, ou "à trios", ou ainda num bacanal de sensações...
É, muitas vezes, da ordem do sexual...
Pode demonstrar sadismo como quando uma postagem nas redes sociais impõe o prazer alheio, sem avaliar a fome do espectador.
Muitas vezes lascivo quando o que é saboreado acorda nos sentidos o que é provado enquanto visceral na troca corpórea sexual.
É mesmo obsceno que alguns possam escolher o que vão comer e outros fiquem com restos.
Além do masoquismo radical das anorexias, ou se alimentar do que não traz prazer, um caso que pode estar envolvido no mundo fitness ou do veganismo.
No caso de se impor o desprazer na alimentação é interessante que a vaidade se aliene de nutrir de satisfação o ego. Numa busca radical de perfeição pode ser deflagrada uma assepsia do que tem de sexual investido em colocar algo pra dentro do corpo.
Assuntos de uma conversa preliminar, já que a profundidade da estética na cozinha incluiu devorar, talvez o sabor do outro.
Chega então mais perto do cume a relação... O umbigo do texto de Rubem Alves: a antropofagia.
Não é sem motivo que há metáforas entorno do comer como algo sexual: bater bolo, alguém sem sal, etc.
Um amor carnal, tem uma ética carnívora, por saborear o gosto do corpo do outro numa refeição sem etiqueta.
Uma ética do desejo, envolta no ritual primevo de mamar, no qual o bebê apreende o gosto/gozo da vida ao libertar a fera: desejar.
É primordial que o desejo de se relacionar se cumpra para que a ceia eucarística aconteça. E a transferência de sentimentos, sentidos, significados e sensações nas múltiplas linguagens é o que proporciona tamanho saber-sabor.
E as perdas cabais contidas em cada pedaço a alimentar o desejo, são deglutidas com sofisticada elaboração, quando o sentimento se desfaz na boca deixando como lembrança o sabor-saber.
Uma experiência paradisíaca em meio ao deserto da vontade de voltar a se satisfazer. Inferno à premeditar o céu, que a boca procura no corpo que contorna, diante da fome de amar.
É solene a metáfora, mestre e aprendiz, já que a única hierarquia que vigora não coroa nenhum dos envolvidos. É preciso humildade e pouca pompa e circunstância pra se entregar numa relação de amor.
Contudo, ceder é o mais alto prazer conquistado por quem não se importa de entregar pedaços caros ao bel sabor.
Fica num nível menor da existência quem come com vigor, pois o lugar privilegiado está em sentir os cheiros a aguçar os sentidos, ao colocar a mesa para que o outro entregue-se sem pudor, e receber um significado estrangeiro ao ouvir que está delicioso. Poesia emprestada aos cozinheiros pelos deuses e que deixa faminta a alma.
(H.C.Q. F., 30 Maio de 2020)
Sentido aguçado:
https://youtu.be/eisDji3Wb8c
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